terça-feira, dezembro 15, 2009

Está se formando no Brasil a "cadeia de profissionalização da cultura"


Imagem gentilmente copiada do site Social Media de Raquel Recuero

Alê Barreto (produtor cultural independente)
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Recentemente, Kátia de Marco, coordenadora acadêmica do Programa de Pós-graduação em Estudos Culturais e Sociais da Universidade Candido Mendes (UCAM), presidente-fundadora da Associação Brasileira de Gestão Cultural (ABGC), membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), subsecretária de Planejamento Cultural de Niterói e coordenadora do projeto Niterói Artes, da Fundação de Arte de Niterói, publicou no blog Acesso um texto falando sobre a profissionalização dos setores culturais e do surgimento de novas demandas formativas requeridas pelas estruturas funcionais das instituições e dos setores de produção artística e cultural.

Segue abaixo o texto na íntegra.


Cadeia de profissionalização da cultura

Por Katia de Marco *





Para traçarmos um breve painel acerca da ativação do processo de profissionalização dos setores culturais e do surgimento de novas demandas formativas em gestão, economia, política e produção na cultura, requeridas pelas estruturas funcionais das instituições e dos setores de produção artística e cultural, e consequentemente aquecidas nos currículos acadêmicos, tomamos emprestado da economia o conceito de “cadeias produtivas”. Consideramos a contribuição dessas estruturas para uma visão sistêmica e holística da instauração de um novo campo de trabalho.

Vivenciamos há três décadas a intensificação de mudanças decorrentes dos processos de globalização econômica e cultural, alicerçados no avanço das tecnologias das redes informáticas e na ampliação gradativa de acessos presenciais e virtuais a esses recursos. Sabemos que o acirramento dessas mudanças se deu, em grande parte, pela paulatina centralidade que a cultura vem assumindo como pedra fundamental do desenvolvimento inclusivo nas sociedades contemporâneas. Se até recentemente a cultura orbitava em segundo plano em torno de segmentos prioritários, hoje ela integra a esfera prima, inserindo-se em estratégias programáticas nos diversos setores sociais, políticos e econômicos.

Em um passado não muito distante, lembramos a concepção da cultura como instância que floresce e atinge sua plenitude em potencialidades desenvolvidas, quando a sociedade em questão obtém resultados positivos em seus índices econômicos e mercados superavitários, como se a liberação dos canais de valorização e de difusão de sua produção cultural, em escalas artesanais e industriais, com profissionalismo, rigor, fundamento e qualidade de conteúdo, estivesse circunscrita aos países ditos desenvolvidos no que se refere à produção de arte, conhecimento e entretenimento. Era como se os países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos tivessem prioridades mais prementes para investimentos, relegando a cultura a um segundo plano. Novos paradigmas norteiam essa dinâmica na atualidade. Novos desafios gerenciais eclodem no século XXI.

Configurações inéditas são compartilhadas na esfera de novas dimensões, no usufruto do tempo nas sociedades ocidentais, notadamente no que tange às mudanças demográficas – taxas de natalidade mais controladas e aumento dos índices de expectativa de vida –, passando pelas dimensões rebalanceadas entre trabalho e lazer, e instaurando a incipiente tendência de distensão de jornadas de trabalho presenciais e de valorização da criação como capital humano e bem tangível para as escalas de novos mercados e de consumos nos grandes centros urbanos (Drucker, 2001) . Por meio da trilogia ideária das distâncias encurtadas, do tempo estendido e, sobretudo, dos acessos informacionais multiplicados pela tecnologia, esse quadro lança as bases de uma tendência global. Trata-se de uma correnteza que expande as novas reconfigurações entre cultura, desenvolvimento e sustentabilidade, proporcionando a geração de novas estruturas profissionais balizadas pelo gerenciamento como conhecimento e método para acessar os desafios de todo tipo de escassez e de concorrências de mercados oscilantes e sem fronteiras geográficas.

Quando falamos em formação e em capacitação profissional, indicamos a ampliação do foco para a percepção de que esse é um dos elos de uma corrente da qual propomos tratar mediante uma abordagem metodológica derivada das estruturas rizomáticas das cadeias produtivas setoriais.

Segundo Jean-Paul Rodrigue , uma cadeia produtiva é uma rede de atividades integradas de criação, de produção, de comércio e de serviços, funcionalmente ligadas e interdependentes, desde a transformação de matérias-primas, passando pelos estágios intermediários de produção, até a entrega do produto acabado ao mercado com o objetivo de criação de valor.

Ao partirmos dessa analogia com o conceito de cadeias produtivas, importamos de maneira exígua a compreensão de que cada parte contém o todo e de que o todo é o somatório ativo do equilíbrio de suas partes. Assim, dividimos a cadeia de profissionalização da cultura em quatro segmentos básicos e estruturantes: 1) formação profissional; 2) formação da profissão; 3) formação do conhecimento; e 4) formação do mercado. Neste artigo, vamos sublinhar sinopticamente cada um deles.


Formação profissional

Ao responder a uma demanda real por capacitação acadêmica, a formação profissional deve estar rigorosamente fundamentada na interação entre saberes e ciências afins, mediante a construção de seu objeto científico e a sistematização dos conhecimentos intrínsecos – técnicos e acadêmicos – que a circundam, na busca de filtrar especificidades e de construir métodos próprios, sob a égide da dialética da construção do saber. É mister que esse nicho de formação esteja balizado pela mescla e pelas nuanças oscilantes da união conceitual com a interação da práxis, construída no cotidiano pregresso, enquanto o conhecimento se dá empiricamente como vivências e práticas dispersas, apesar de intensivas, a ponto de gerar e de refletir essas novas configurações profissionalizantes.

Se antes recebíamos, nos cursos de graduação e de pós-graduação que desenvolvemos na Universidade Candido Mendes, em convênio com a Associação Brasileira de Gestão Cultural desde 2001, artistas advindos dos diversos meios de expressão, produtores independentes e coordenadores institucionais de cultura que buscavam afinar o contato com uma linguagem mais técnica e estratégica do mundo dos negócios e dos conceitos sociológicos mais amplos das esferas da cultura, para ampliar suas atuações em suas carreiras ou nos serviços prestados, hoje também recebemos profissionais oriundos de bases formativas de graduação de diversas áreas acadêmicas, com as quais justamente abrimos o diálogo acadêmico e a interação com seus mercados de trabalho. Discorremos sobre administração de empresas, marketing institucional, economia, direito, ciências sociais, museologia, comunicação, contabilidade, além das artes em geral.


Formação da profissão

A formação da profissão é uma construção gerada por seu reconhecimento social e pelo fortalecimento de sua representação associativa, que é consequência da capacitação profissional institucionalizada, considerando que essa etapa avaliza o status formal de um conhecimento. Este, por sua vez, reflete uma demanda preexistente nos mercados de consumo (ideias, produtos e ações) e de trabalho (emprego e necessidades de prestação de serviços), que respondem a uma ativação ou a um potencial de demandas estimuladas em crescimento. No entanto, indo além do que chamamos de formação da profissão, institui-se o amadurecimento desse processo que trata do estágio de “formalização da profissão”. Trata-se de um processo incipiente, em curso, que se reveste de iniciativas e de programas institucionais voltados para a inserção dos profissionais diplomados em universidades no mercado de trabalho. Esse labor especializado contribui efetivamente para o incremento de índices de acesso e de desenvolvimento no Brasil, por meio de ações agregadoras de valores advindos da produção cultural em prol da qualidade de vida nas sociedades, da preservação histórico-cultural das regiões e de segmentos múltiplos que colorem nossa diversidade cultural.


Formação do conhecimento

O elo da cadeia de profissionalização da cultura que reflete a fundamentação teórica dos objetos de estudo e das especificidades de método e de abordagem para acessar os marcos conceituais e os focos de interesse encontrados nos temas correlatos foi tomado emprestado das áreas e das ciências afins. A formação do conhecimento de uma nova área de saber dialoga com áreas irmãs, bebe nas fontes do mundo real e tateia seu campo teórico com radares atentos em captar facetas do conhecimento empírico, da práxis cotidiana e do histórico de percurso da experiência.

A profissionalização e o aprimoramento de um novo campo de trabalho que urge ser construído por novas exigências e expectativas legítimas de uma sociedade e de um tempo histórico em mutação passam pela fundamental etapa de inserção e de imersão acadêmica, tornando-se campo a ser explorado pela pesquisa, pelos métodos científicos e pelas esferas do pensamento. Assim, fortalecido pelo papel desempenhado pelas universidades na sedimentação desse elo da cadeia de profissionalização, esse conhecimento retorna ao mercado de trabalho, por meio de capital humano especializado, para o desenvolvimento de produtos e para a prestação de serviços, revigorando práticas, abrindo janelas perceptivas, aprofundando alicerces de atuações derivadas e promovendo o aquecimento da referida cadeia, apta e fortalecida para cumprir suas funções em prol da otimização dos objetivos e do desenvolvimento pleno almejado.


Formação do mercado

Elo de ponta da cadeia de profissionalização da cultura, o mercado é o termômetro, é o espaço da concretude e das trocas reais, simbólicas e materiais. É nele que ocorre a confirmação ou não das ideias, dos prognósticos e das expectativas. Do mercado retornam as realidades, as vivências, as informações e os índices que refletem, interagem e avaliam todos os outros elos dessa cadeia.

De que vale termos capacitação a contento, reconhecimento das instituições quanto à importância de integração em seus quadros de gestores e de produtores culturais diplomados, acumularmos linhas de pesquisa, publicações e teorias renovadoras, se não tivermos uma resposta positiva desse espaço camaleônico, polêmico e quase imprevisível que é o mercado?

Sabemos que a cultura é e deve ser sempre o campo das utopias. No entanto, a interação com o real põe tudo e todos em seus devidos lugares. Eis aí o gargalo da cadeia de profissionalização, o desafio maior e mais urgente das políticas e das estratégias de ação públicas e privadas para o setor. Vêm desse cadinho experimental as respostas para inúmeros arquétipos, análises e confabulações produzidas nos outros elos da cadeia. Nesse sentido, falamos de três mercados: o de trabalho, o de consumo e o de audiência para produtos, serviços e ações artístico-culturais.

Finalmente, essa realidade começa a ser tateada, dimensionada e analisada por pesquisas fidedignas de instituições como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Ministério da Cultura (MinC), as associações e as universidades. É a partir desse momento que nos deparamos com o grande obstáculo da cadeia de profissionalização: a limitada audiência em contingentes populacionais, de diferenciados perfis etários e de segmentos de classe, para a arte e a cultura em nosso país. Na atualidade, esse estágio da cadeia obstaculiza o desencadeamento processual dos outros elos, na medida em que enfrenta um processo mais lento de absorção social em relação a todo o desenvolvimento já alcançado, em termos quantitativos e qualitativos, pelos outros segmentos. Tanto os fluxos de produção e de distribuição quanto os canais de exibição e de reconhecimento de valor público dos insumos, produtos e serviços culturais, mesmo em processo incipiente de consolidação, encontram-se mais adiante quando comparados às escalas de resultados dos índices reduzidos, desequilibrados regionalmente e com grande concentração social no que se refere aos hábitos e às audiências da população brasileira na fruição e no consumo da arte e da cultura.

Ficamos aqui com o grande desafio de se conferir mais atenção institucional para a ampliação e a formação de públicos, a facilitação ampla dos acessos à arte e à cultura em todo o seu espectro de diversidades e escalas, a formação do olhar e do gosto para os frutos da criação e do espírito humano por meio de programas integrados e contínuos de educação para as artes.


* Cientista social e mestre em Ciência da Arte pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É coordenadora acadêmica do Programa de Pós-graduação em Estudos Culturais e Sociais (PECS), da Universidade Candido Mendes (UCAM), onde também atua como professora, pesquisadora e coordenadora acadêmica das pós-graduações lato sensu em Gestão Cultural (MBA), Produção Cultural, Gestão Social (MBA) e Vinho e Cultura. É presidente-fundadora da Associação Brasileira de Gestão Cultural (ABGC) e membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA). É subsecretária de Planejamento Cultural de Niterói e coordenadora do projeto Niterói Artes, da Fundação de Arte de Niterói. Atua como artista plástica e curadora em artes visuais. Fundou recentemente a editora e-livre.

1. DRUCKER, Peter F. Desafios gerenciais para o século XXI. 4. ed. São Paulo: Pioneira/Thomson, 2001.