sábado, novembro 22, 2008

O que se cria/copia




Texto de Rita Marisa Ribes Pereira, professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, publicado no site da TVE Brasil dentro do projeto "Escola e Produção Cultural", dedicado a refletir sobre as diferentes produções culturais e as formas como a escola se relaciona com elas.

“Nada se cria. Tudo se copia.” Quantas vezes já nos deparamos com essa sentença? Mas o que, exatamente, queremos expressar com ela? Uma insatisfação frente às novidades que já parecem conhecidas? Um desprezo pelo potencial inovador da cópia? Uma descrença no surgimento do novo? A espera de algo excepcionalmente original? No entanto, ao mesmo tempo em que olhamos desconfiados aquilo que se apresenta como cópia, nos deixamos seduzir pelo desejo de copiar – a moda da vitrine, a música de que gostamos, um texto que queremos distribuir para muitas pessoas, ou mesmo um modo de ser. Essa relação paradoxal de apego e desprezo ao que é copiado, de busca e descrédito a uma produção que seja, de fato, original, oferece questões bastante ricas para se pensar a respeito dos processos de criação nas mais diversas áreas da realidade humana. O que é, enfim, o novo? Como surge? Como nos relacionamos com ele? Quais os limites entre a criação e a cópia? O que é criar? Pode a cópia ser uma forma de criação? De onde vem essa relação ambivalente com o ato de copiar?

Um primeiro ponto que aqui convém destacar é que, uma vez que o ser humano é um ser eminentemente social e histórico, os modos de produção por ele criados também são, por natureza, históricos e sociais. Isso implica, por um lado, compreender que nem sempre produzimos do mesmo modo e que nem sempre nos relacionamos do mesmo modo com as obras que produzimos e, por outro lado, que nenhuma produção humana acontece de maneira isolada, mas deriva de uma base comum a todos os homens, que é a realidade social em que vivemos. Desse modo, ainda que cada esfera da atividade humana – a arte, a ciência, a política, a economia etc. – desenvolvam metodologias próprias e bem definidas em seu universo, todas elas se relacionam entre si, compartilhando elementos trazidos de um cotidiano vivo em permanente transformação. Por isso mesmo, o que lhes confere identidade é o modo singular com que cada área aborda essas questões que são comuns.

Pensemos um pouco sobre isso. Como se produz o conhecimento científico? Como nasce uma obra de arte, um filme, uma música, um desenho, uma caricatura? Como são construídas as leis? O que são as teorias científicas, as artes ou as leis se não respostas provisórias a questões que cada sociedade, formula, reformula, reinventa, em diferentes épocas, desencadeando inúmeros processos de criação? Desse modo, as transformações acontecidas na esfera cultural relacionam-se também com as modificações acontecidas no âmbito da base econômica, dito de outro modo, com as transformações e consolidação dos modos de produção capitalista.

É nesse contexto que buscaremos situar nossa reflexão sobre criação e reprodução, tomando como ponto de partida a contribuição do filósofo alemão Walter Benjamin (1987), que analisou as transformações dos modos de produção no contexto da arte, buscando não perder de vista a relação com as transformações na esfera econômica e social. Para o autor, o capitalismo representa não somente o surgimento de um novo modo de produção econômica, mas também o surgimento de uma nova ordem cultural. Pensemos um pouco sobre que transformações são essas: a substituição do trabalho manufaturado e artesanal pela produção seriada da linha de montagem, a presença da máquina no processo de produção, a fragmentação do trabalho e o envolvimento de um maior número de pessoas na produção, a redução do tempo de trabalho empreendido em cada peça produzida, a produção e reprodução em série de peças iguais, a relativização do tempo de durabilidade das peças produzidas que podiam, então, ser mais facilmente substituídas. Em contrapartida, transformaram-se também os modos de recepção dessas peças produzidas: diminuiu o tempo de espera para que elas ficassem prontas, tornou-se possível um barateamento do seu preço, podiam ser adquiridas por muito mais pessoas e em quantidades maiores, criou-se uma padronização e massificação do consumo.

Walter Benjamin observa essas transformações no campo da produção artística. Antes das modificações surgidas com o capitalismo, principalmente pelo desenvolvimento das técnicas de reprodução, as obras de arte se caracterizavam pela sua exclusividade e existência única. Só existe, no mundo todo, uma única Monalisa, uma única Vitória de Samotracia, um único Sarcófago de Tutan­kâmon ou as pirâmides únicas de Queópes, Quéfren e Miquerinos. Essa existência única fazia com que as obras de arte só pudessem ser vistas por um número muito restrito de pessoas, por isso mesmo, precisavam ser muito duráveis, para que ao longo dos anos pudessem ser contempladas. Sua unicidade, aliada à dificuldade de acesso a essas obras, acabou por gerar um tipo de relação com a arte que era sagrada, que seguia os rituais de um culto. Algumas obras inclusive só podiam ser vistas por pessoas iniciadas. Em função disso, o que caracterizava todas as obras de arte até então era a sua existência única e a sua durabilidade. Mas como compreender essa “existência única” se a Monalisa, por exemplo, pode ser vista em tantos livros, em capas de cadernos, camisetas, até mesmo em copos de requeijão? É no interior dessa questão que encontraremos o nascedouro de nossas desconfianças com a prática de “copiar” e a fidelidade à originalidade.

A cópia sempre esteve presente nos processos de criação artística, pondera Walter Benjamin. A imitação era uma prática comum utilizada como metodologia de ensino entre os artistas e seus discípulos, como forma de difusão da arte ou mesmo modos de obtenção de lucro. Nesse contexto, no entanto, toda cópia é uma imperfeição, o que coloca uma profunda distância entre a obra original e as reproduções que dela são feitas, pois mesmo a mais perfeita cópia não apreende algo que só se apresenta no original: a sua autenticidade – o aqui e agora da obra – elemento guardador da história e das transformações sofridas pela obra, seja ao longo do tempo, seja em suas relações de propriedade. É o que a obra tem de irrepetível que a torna única; apreendê-la significa também conhecer sua história.

Leia o texto na íntegra: http://www.tvebrasil.com.br/salto/boletins2001/epc/epctxt1.htm

Um comentário:

Ana Fernanda disse...

Reflexão interessantíssima!
Em evento que estamos organizando no curso de Produção Cultural da UFBA, os momentos mais tensos foram justamente aqueles em que os alunos sentiam a pressão de ser "originais". O conceito do evento parecia já ter sido usado e abusado, e todos os nomes davam aquela sensação de dèja vu... refletir sobre o que é criar em uma sociedade em que o volume de criação é estonteante é fundamental para os produtores.