domingo, novembro 13, 2016

"Estamos diante de um sistema educacional no qual a qualidade da cultura precisa ser introduzida e dinamizada", afirma José Carlos Garcia Durand



(José Carlos Durand/ Foto: Adriana Vichi)




Por Alê Barreto
alebarreto@gmail.com


Fiquei sabendo ontem que o livro "Incômodos Best-sellers, USA: Publicidade, Consumo e Seus Descontentes" de José Carlos Garcia Durand, sociólogo e pesquisador da USP, especialista na área de política e gestão culturais, está na lista dos vencedores do Prêmio Jabuti 2016.


Este pesquisador é uma referência na minha formação. No meu novo livro "Carreira Artística e Criativa", faço uma citação de um trecho de um texto dele.

Hoje, ao navegar pela internet atrás deste livro, encontrei esta bela entrevista que ele concedeu na época do lançamento de outro livro (chama-se "Política Cultural e Economia da Cultura") para a Revista E do Sesc São Paulo, publicada também no site do Centro de Pesquisa e Formação Sesc São Paulo.



Segue a transcrição na íntegra.


Entrevista com José Carlos Garcia Durand
Professor titular de Sociologia e Coordenador do Centro de Estudos da Cultura e do Consumo da FGV-SP


Professor da pós-Graduação em Estudos Culturais da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (EACH/USP), José Carlos Garcia Durand é especialista na área de política e gestão culturais, exemplificadas tanto por modelos internacionais como pelo caso brasileiro.



Em entrevista para a Revista E, o especialista, que lança o livro Política Cultural e Economia da Cultura, em abril, pela Edições Sesc e Ateliê Editorial, aborda a necessidade de fomentar a chamada economia da cultura no país. “Reflexões econômicas são importantes para pensar processos culturais, o que é indispensável para sabermos como devemos gastar melhor o dinheiro nas diversas áreas, como cinema, teatro e daí por diante”, explica. A seguir, os principais trechos.

Qual a importância da cultura para o Estado?


Essa é uma relação antiga, que remonta à monarquia absoluta na Europa. Já no século 20, ela foi pautada pelo trauma do Nazifascismo, mas depois da 2ª Guerra (1939-1945) houve um consenso de que o Estado não deveria ser forte em cultura, um posicionamento do século 20 que se converteu em diretriz ou inspiração para muitas políticas nacionais. Vou dar um exemplo: Os Estados Unidos, até a era Kennedy, só tinham políticas para países estrangeiros e criaram uma fundação para dar subsídio financeiro a artistas. O máximo a que esse extremo de liberalismo leva é oferecer recursos públicos à cultura, mas sem se envolver com ela. Tal formulação representa o que ensinamos como modelo anglo-saxão de política cultural, do chamado braço de apoio. Eu ofereço dinheiro, mas é você quem distribui, não venha me chamar de totalitário ou conservador. O que não coincide com modelos centralizados e monarquias absolutas do passado, como é o caso da França.

O Brasil se situa em qual dessas linhas? Liberal ou estatal?


Na segunda, porque nós carecemos de duas circunstâncias. Uma é o mecenato privado, como no caso americano, outra é um sistema escolar sólido, que forme pessoas no seu gosto e percepção estética, com visão humanista de mundo. Logo, a França tem um sistema escolar com um alto poder de “inculcação”, como falamos em sociologia. É comprovado estatisticamente que o diploma universitário é duas vezes mais importante do que a renda para definir consumo cultural.

Qual a origem do mecenato com recursos próprios?


Diferentemente dos Estados Unidos, a América Latina era caracterizada por uma Igreja forte, monopolizadora da caridade. Então, as comunidades e os homens notáveis da coletividade tiveram que se organizar para criar instituições que conduzissem dinheiro privado para obras de interesse coletivo. A presença da Igreja, junto com outras circunstâncias, obviamente, teria dificultado o surto de mecenato no Brasil. Agora, não podemos esquecer que os Estados Unidos não representam o melhor dos mundos nesse assunto, e que boa parte das instituições americanas constituídas ou ampliadas nos anos de 1920 foi constituída com a lavagem da imagem dos barões ladrões do final do século 19. A família Rockefeller e tantos outros. A imagem desses homens foi melhorada com a representatividade que criaram ao estar no cume da rede de fundações americanas na primeira metade do século 20.

A cultura era vista como um caminho para a redenção?


Entre outras coisas. O porte das fundações americanas é poderoso, sobretudo as que estão no alto da escala e atuam simultaneamente em artes, ciências, assistência social, saúde, educação. Cada uma faz um pacote de finalidade e não aceita projetos em outras áreas. Daí, se 10 anos depois a instituição resolve não mais financiar esse assunto, tem que declarar publicamente. É tudo muito formalizado e claro.

Em que momento histórico surgem leis de incentivo à cultura?


Responderei isso mencionando um aspecto que é pouco lembrado. O Brasil possui tradição de incentivo fiscal que remonta aos anos de 1950 e que atendeu a vários interesses, talvez a mais conhecida seja a destinação de recursos para a Região Nordeste por meio da Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste), mas também tem a constituição de um polo tecnológico na Amazônia por meio da Sudam (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia). O mais importante de retermos é que, ao deixar de existir o incentivo fiscal, os empresários se retraem, eles não criam raízes. Precisamos observar que, quando o então presidente José Sarney instrumentalizou a lei de incentivo fiscal pela primeira vez, na segunda metade dos anos de 1980, já existia a tradição duvidosa dos incentivos fiscais, só que para o pessoal da cultura isso foi recebido como uma benção, e assim foi instalado um sistema de abatimento de recursos.

A instituição da Lei Sarney acompanhava um desejo de que a cultura fosse incentivada, financiada. O senhor consegue identificar quais os agentes disso? A cultura estava sendo vista como um instrumento social?


Não, a cultura estava sendo vista mercadologicamente, o que não é um fenômeno brasileiro, mas o que os norte-americanos chamam de patrocínio empresarial. Desde o final dos anos de 1960, nos Estados Unidos os empresários criaram uma organização para ajudar a comunidade empresarial a aproveitar o incentivo oferecido pelo governo. Portanto, isso não é específico do Brasil, mas diz respeito a vários países. Não é casual, está relacionado com o fato do esgotamento da eficácia da publicidade original. A partir dos anos de 1980, os empresários, que também são os grandes anunciantes, descobriram que havia uma saturação de publicidade aos olhos do público, e os publicitários, gostosamente, diziam aos seus clientes o seguinte: “Nós sabemos que metade de cada dólar gasto em publicidade é aproveitada e metade desperdiçada, mas, como ninguém sabe qual é a metade, nós continuamos a gastar o mesmo de sempre”. Os empresários começaram a perceber que em vez de gastar milhões em anúncios nacionais, seria mais eficiente gastar para uma região e um meio de publicação específicos, uma estratégia seletiva de anúncios, decisão coadjuvada pelos ancestrais dos controles de audiência eletrônicos e outros sistemas. Passou-se de uma etapa de publicidade de massa para a segmentação.

Mede-se a eficácia de um incentivo à cultura tendo em vista o anúncio comercial?


Bem, a partir de um evento cultural patrocinado, certo tipo de serviço comercial privado faz o clipping, ou seja, medem-se nos jornais do dia seguinte quantos centímetros de matérias surgiram em função do evento e quantas vezes a empresa patrocinadora foi mencionada. Comparando com a publicidade convencional, conclui-se que tal ação gera uma imagem positiva e mais consistente.

A revalorização do crítico cultural é considerada importante para o desenvolvimento de um sistema mais amplo?


Como sociólogo, é fundamental considerar que o valor da obra cultural não é totalmente criado no ateliê do artista, mas, sim, concebido parcialmente na sua circulação social, e nesse fluxo o crítico é fundamental.

Hoje, a desmobilização da crítica atenderia a quê?


Ao fato de o noticiarismo cultural ter se tornado também a instância de crítica na área. O jornalista nem sempre está suficientemente profissionalizado para deter-se com cuidado em alguns movimentos e artistas, sendo obrigado a uma agenda diversificada de mais e remuneradora de menos. Com isso você contamina o aspecto crítico, porque há perda de autonomia.

O que tem origem fora do sistema acaba sendo absorvido por ele. Como se explica a absorção da contestação?


Um exemplo: O grafite, a meu ver, torna-se uma manifestação difundida por ser uma iniciativa quase que anônima. Os grafiteiros são considerados num ato de rebeldia e de invenção de formas. Só que esse ato de invenção, quando se aplica a um olhar mais ingênuo, iguala-se, passando a ser uma contestação que também pode ser incorporada ao sistema. Há galeristas que levam grafiteiros para pintar suas paredes ou telas. A capacidade de absorção do sistema é muito grande. Mas a contrapartida disso é que a capacidade de provocar impacto é cada vez menor.

A questão da lei de incentivo também tem como objetivo a arte comercial?


É proibido por lei veto a qualquer gênero. Esse é um paradoxo das leis de incentivo. Qualquer atitude, palavra ou gesto que se considere artístico deve se transformar no conteúdo de um projeto e ser levado a um exame de apreciação. A arte comercial também tem direito de captar recursos.

Em um país grande e complexo como o nosso, como o senhor vê o processo de uma política cultural, tendo em vista as diferenças regionais?


A palavra política cultural nomeia o conjunto das ações, legislações, decisões e escolhas governamentais em relação à cultura. Sociedades classistas enfrentam a necessidade de criar instituições para promover a cultura das suas elites para que o país ganhe mais prestígio e não seja conhecido, apenas, pelas festas de seu povo, quaisquer que sejam suas origens. Nesse sentido, faz-se uma aliança entre as elites e o governo. Essas pessoas têm como conduta uma visão exclusiva de cultura. O homem ou mulher de elite, que durante décadas e décadas, num país como o nosso, eram guindados a postos de direção cultural, não teriam nem como traço biográfico nem como imposição de partido político nenhuma garra para tentar fazer o Estado estar presente no consumo cultural das classes populares, que deve ficar espontâneo aos olhos deles, ou ser fomentados pela indústria e não por eles. Não falo em desonestidade, mas o dirigente cultural oriundo da elite e com o posto de diretor de museu, por exemplo, pode gastar a maior parte do tempo tentando obter doações ou aplicar verba para ampliação do acervo, não como agente empenhado em ampliação de frequência. Isso está sendo impulsionado mais por marketing cultural do que por vontade isolada de diretores de museus.

Com isso, chegamos a um novo status da economia da cultura. Ainda há resistência no Brasil de falar sobre isso?


Tenho me manifestado a respeito da necessidade de fomentar a economia da cultura e sou incisivo em dizer que, inicialmente, isso passa por iniciativa das autoridades culturais (secretarias e Ministério da Cultura) em criar estímulos para atrair economistas para estudar a área cultural. Normalmente, em uma faculdade de economia, os formandos saem em direção ao mercado financeiro, e isso torna mais difícil atrair jovens com reflexões econômicas para pensar processos culturais, o que é indispensável para sabermos como e onde devemos gastar melhor o dinheiro nas diversas áreas, como cinema, teatro e daí por diante. Não temos núcleos preocupados, especificamente, com economia da cultura.

Tal resistência está ligada a quê?


A relutância existe porque a chamada área cultual é formada por pessoas com capacidades perceptivas muito diferentes entre si. Não temos uma arte de lidar com números, o que acontece no caso da economia da cultura. Ela desenvolveu-se em alguns países, pois foi criado um sistema diversificado, no qual pessoas que não conseguiam se interessar por indústria, comércio e serviços em geral estavam inseridas. Eles gostariam de compor uma música ou pintar um quadro, então havia esses desviantes que se diplomaram em economia e tinham pendores artísticos. Isso permitiu a constituição de uma associação importante de economistas da cultura. No Brasil está ficando difícil desenvolver algo do gênero.

O que a cultura poderia ganhar na hora em que se reconhecessem essa interação como necessária?


Primeiro, reconhecer que temos nas sociedades mais ricas um conjunto de agentes interessados em promover atividades com presença de público e retorno econômico. A procura do público torna isso importante, um estímulo para a reflexão econômica. Não esqueçamos que o cinema dos Estados Unidos criou mecanismos de medição de impacto de público muito importantes nesse cenário.

Como a gestão da cultura e sua profissionalização são vistas no aparelho do Estado?


Não há uma resposta simples para essa pergunta. É difícil de responder o que está faltando, mas é preciso haver o acesso de pessoas a uma avaliação de projetos e políticas culturais através de compostos que considerem o valor cultural das obras, o desencadeamento da procura por outros bens e daí por diante, o que não é fácil de ser feito. Agora, acho que no Brasil estamos diante de um sistema educacional no qual a qualidade da cultura precisa ser introduzida e dinamizada, o que é fundamental, pois a ponte entre educação e cultura está muito esburacada. É preciso melhorar essa conexão em uma época na qual não há legitimidade em dizer que cultura é isso ou aquilo. Educação deveria ser mais associada à cultura, não se reduzindo ao entretenimento.




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* Alexandre Barreto é administrador pela Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (EAD/UFRGS) e MBA em Gestão Cultural pela Universidade Cândido Mendes (RJ) . Empreendedor que dissemina conhecimentos e atua em redes para promover mudanças. Escreveu os livros Aprenda a Organizar um Show e Carreira Artística e Criativa
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