segunda-feira, julho 27, 2015

Eliane Costa fala sobre produção, gestão cultural e sobre o novo MBA em Bens Culturais da FGV Rio




Por Alê Barreto*
alebarreto@gmail.com


Estive na FGV Rio assistindo a palestra do presidente da Funarte, Francisco Bosco, sobre a condução do trabalho de implementação da Política Nacional das Artes. Nesta atividade, me reencontrei com a professora Eliane Costa e tive a ideia de conversarmos um pouco sobre sua trajetória profissional, que considero muito rica em diversidade. Aproveitei também para saber um pouco sobre o novo MBA em Bens Culturais da FGV Rio.


Boa leitura!


[Início da entrevista]




Alê Barreto - Acompanho seu trabalho desde 2007, quando assisti um seminário sobre gestão cultural no Santander Cultural em Porto Alegre, mas sei que muito antes, em 2003, você participou do início da criação do Programa Petrobras Cultural. Depois seguiu à frente do mesmo até 2012. Como foi essa experiência junto a maior patrocinadora da cultura e das artes no Brasil?

Eliane Costa - Considero um imenso privilégio pessoal e profissional essa oportunidade que tive. Cheguei à Petrobras nos anos 70 em um dos concursos para a área de Tecnologia de Informação e Comunicação. Com o tempo, fui migrando para a área de Comunicação Institucional, e, dentro dela, para o setor de patrocínios culturais, que passei a gerenciar em 2003. Na minha vida fora da Petrobras, eu sempre tinha estado perto da cultura: bem jovem fazia pesquisas sobre choro e samba para a Funarte; mais tarde lancei uma coleção de projetos multimídia sobre bairros do Rio, que teve o Circuito Mauá: Saúde, Gamboa e Santo Cristo e o Circuito Copacabana; e em 1993 fui uma das fundadoras do bloco Escravos da Mauá, na região portuária carioca, em cujas rodas de samba toco canto e cavaquinho há mais de 20 anos.

Como gerente de patrocínios, participei da formulação do Programa Petrobras Cultural, programa bastante robusto que, antes de mais nada, buscou propor uma política cultural sólida e consistente, que atuasse na cultura em todos os seus segmentos e de uma maneira ampla, apoiando ações não só de criação e difusão artística, mas também voltadas à memória, à formação e à reflexão sobre a cultura e o pensamento brasileiros.

Minha chegada à gestão dos patrocínios culturais da Petrobras coincidiu com a chegada de Gilberto Gil ao Ministério da Cultura, o que foi fantástico, porque ele redefiniu o papel do ministério a partir de uma visão contemporânea de cultura, o que alargou enormemente seus desafios e oportunidades. Nesse momento, o MinC retomou a proposição de políticas públicas para o setor (com ampla participação da sociedade civil através das conferências e das consultas públicas) e as prioridades que foram assim definidas foram muito inspiradoras para diversos gestores de cultura nas empresas.

Durante a minha gestão, buscamos incentivar o acesso democrático aos recursos de patrocínio por meio dos editais e trabalhar na perspectiva da diversidade e dos direitos culturais, em grande sintonia e diálogo com a política pública. Para além da mera busca de visibilidade da marca, própria do modelo do marketing cultural, priorizamos, naquele momento, a reputação da marca, evidenciando o papel cidadão e estratégico que foi a marca da empresa desde sua criação. Procuramos valorizar o próprio momento que o Brasil estava vivendo, com o reconhecimento de milhares de novos agentes no campo cultural, incentivados pelos Pontos de Cultura do Programa Cultura Viva e por toda uma efervescência cultural que eclodia nas periferias de todo o país, ao lado da emergência de novas práticas suscitadas pela cultura digital. Abrimos seleções públicas específicas voltadas ao acesso desses novos protagonistas, por exemplo as de formação & educação para as artes, a de cultura digital e a de audiovisual digital, que infelizmente não mais integram o programa.






Focalizando a gestão do músico e compositor Gilberto Gil no Ministério da Cultura (MinC) – que se estendeu de janeiro de 2003 a julho de 2008 – Eliane Costa escreveu o livro "Jangada Digital"




Alê Barreto - Quais projetos que você acompanhou que considera importantes para o atual cenário das artes e da cultura no país?

Eliane Costa - Por conta do grande diálogo que, nesse período, a Petrobras teve com as políticas públicas, pude acompanhar de muito perto a gestação e a implantação de diversos editais muito estruturantes criados pelo ministério, como o Cultura Viva, o edital de Culturas Indígenas, Arte e Patrimônio, Cultura e Pensamento, o Myriam Muniz, Klaus Vianna e Carequinha, para o teatro, a dança e o circo, entre muitos outros. Considero o Cultura Viva o mais importante deles, por sua concepção extremamente ousada e em sintonia com a contemporaneidade, os novos paradigmas digitais de expressão e de acesso ao conhecimento, a diversidade e os direitos culturais. Não à toa ele virou lei: a Lei Cultura Viva foi uma conquista importante e constitui hoje uma política de Estado. A idéia dos estúdios de produção audiovisual digital, nos Pontos de Cultura, com micros conectados à internet, é absolutamente revolucionária, na medida em que promove diversidade cultural e lingüística na rede. Traz a possibilidade de que outros agentes, fora do mainstream, criem e façam circular conteúdos culturais que propagam novos olhares, sotaques e linguagens, já que os Pontos de Cultura envolvem, majoritariamente, públicos em situação de vulnerabilidade social – comunidades indígenas e quilombolas, favelas, pequenos municípios e nas periferias das grandes cidades. Do ponto de vista dos projetos que foram patrocinados diretamente pela Petrobras, tive o privilégio de conhecer as mais reconhecidas iniciativas artísticas e culturais do país – das mais grandiosas às mais singelas. Não gostaria de citar nenhuma, especificamente, pra não ser injusta, ou esquecida, com as demais. A grandeza e a diversidade desse conjunto foi o que sempre me importou.

Alê Barreto - Em quais pontos você acha que avançou a produção cultural? O que precisa mais qualificação?

Eliane Costa - Dos primeiros editais que lançamos na Petrobras, até os últimos dos quais participei lá (e também nos muitos outros em que participo, hoje, como avaliadora de projetos em editais públicos e privados), deu pra acompanhar uma grande evolução na consistência dos projetos apresentados. No início, era muito comum a gente receber idéias que ainda não eram, propriamente, projetos. Hoje, isso já mudou bastante. Vejo que os projetos apresentados são muito mais consistentes e, mais que isso, procuram trabalhar sua articulação com outras iniciativas, pensando na contribuição menos fugaz e mais estruturante que possam deixar... uma preocupação menos focada somente no evento, no efêmero, e mais no processo.

Na Caravana Petrobras Cultural, que fazíamos quando do lançamento do edital anual, percorrendo todos os estados brasileiros, pude conhecer e prestar atenção à imensa diversidade de demandas e dificuldades que marca a cena da produção cultural em nosso enorme país. Há uma grande disparidade de acesso às oportunidades. Nem sempre participar de um edital é, de fato, concorrer.

Por outro lado, fala-se muito da necessidade de qualificação dos produtores culturais, mas esses estão correndo atrás, nas muitas alternativas que temos hoje, de qualificação, formação, MBA’s, etc e o que acontece é que hoje, temos muitos produtores culturais qualificados, que conhecem e compreendem a cena onde estão inseridos. Seu blog, Alê, o “Produção Cultural Independente” e a sua militância no campo da produção cultural, vem, sem dúvida, ocupando um espaço super importante nesse processo.

Na outra ponta, vejo ainda uma grande necessidade de qualificação dos gestores culturais, tanto nas empresas quanto no poder público: de vez em quando ainda topamos com alguns que, francamente, ainda tem uma visão praticamente iluminista do que é cultura. Ainda com aquela visão anacrônica da cultura como a cereja do bolo. 


Alê Barreto - Quais são, na sua opinião, os maiores desafios de um gestor cultural nas empresas, hoje?

Eliane Costa - Dentro das empresas há um terreno em permanente disputa entre o marketing, a gestão tributária e a política cultural e se o gestor cultural não trouxer uma concepção ampla, sólida e profundamente convincente sobre os desafios que estão hoje postos à cultura (e às empresas) ele é atropelado, se tornando apenas o gestor da tal cereja do bolo. Hoje, o gestor cultural nas empresas precisa conhecer profundamente o planejamento estratégico da organização onde ele atua, sua missão, valores, públicos prioritários; compreender que o patrocínio é uma das ferramentas de seu mix de comunicação e que a marca é um dos ativos mais valiosos da empresa. Mas tem também que entender que patrocínio cultural não é só negócio. É perfeitamente possível fazer patrocínio cultural privado sob a ótica do interesse público.

Precisa ter uma compreensão contemporânea de cultura, que vá além das artes e das letras, sem no entanto desconsiderá-las. Tem que conhecer o contexto brasileiro e os desafios globais, os compromissos internacionais assumidos pelo país, como a Convenção da UNESCO para a promoção e a proteção da diversidade cultural, a Agenda 21 da cultura, as metas do milênio, o Compromisso de Túnis no âmbito da Cúpula Mundial da Sociedade da Informação... Tem que conhecer e dialogar com as políticas públicas...

O gestor cultural nas empresas tem que ter uma compreensão contemporânea sobre o papel das corporações no campo da cultura. O marketing cultural como o conhecemos no século passado se tornou mais um canal saturado de comunicação, como tantos outros. Só a visibilidade da marca não leva a mais nada. A reputação é muito mais importante. E ela é uma conseqüência da percepção da identidade da empresa e da qualidade das suas práticas e relações seus públicos, ao longo do tempo. A cultura como quarto pilar da sustentabilidade, inclusive, vai além da promoção de ações culturais. O gestor cultural, sem dúvida, tem hoje desafios muitíssimo mais complexos do que aqueles que ele tinha na década de 90.

Alê Barreto - Precisamos hoje no Brasil mais “produção cultural (criação e realização de projetos)” ou mais “gestão cultural” (administração de carreiras artísticas, programas, grupos, pontos de cultura, ações de economia criativa)?

Eliane Costa - 
Precisamos dos dois. Ou melhor, de tudo isso: criação, produção, circulação, memória, formação, reflexão, etc... De políticas culturais, tecnologias sociais e outros dispositivos, de bons avaliadores de projetos e de ótimos formuladores de editais, de gente preocupada com a formação de públicos, com as novas possibilidades de expressão e de acesso ao conhecimento trazidas pelas redes e tecnologias digitais, com a diversidade cultural, com a articulação cultura-educação, com a revisão dos marcos legais que absolutamente não funcionam para o campo cultural e, claro, com verbas para a cultura proporcionais aos seus desafios. Precisamos de produtores, gestores e agentes culturais comprometidos com a cultura em todas as suas dimensões: a simbólica, a cidadã, a econômica e também a sustentável. 








Eliane Costa organizou juntamente com Gabriela Agustini a obra "De baixo para cima", que reúne o pensamento de articulistas e realizadores sobre as transformações vivenciadas pela produção dos bens simbólicos nos últimos anos, com especial atenção à cidade do Rio de Janeiro.



Alê Barreto - Estes desafios são similares na gestão pública?

Eliane Costa - Sim. A cultura precisa ser central no debate sobre desenvolvimento e sustentabilidade. E para isso precisamos de gestores públicos fortes no setor cultural, que se façam ouvir no conjunto das pastas. Neste momento, por exemplo, vejo em Juca Ferreira essa disposição, apesar de todas as dificuldades do contexto maior. A cultura precisa ser reconhecida na proporção do que ela representa para o nosso país. E isso precisa se refletir no orçamento da pasta. Para que o ministério possa apoiar diretamente iniciativas que não são midiáticas e/ou sedutoras às empresas. A cena do financiamento à cultura no Brasil é concentrada e perversa. A centralidade das leis de incentivo cristalizou um quadro em que o recurso público é mobilizado por escolhas privadas. Precisamos de políticas públicas e para isso é importante que tenhamos gestores culturais qualificados.

Alê Barreto - Como tem sido esta nova etapa em sua carreira, sendo hoje professora, coordenadora de um MBA na Fundação Getúlio Vargas e aluna de um doutorado? Sente saudade da vida corporativa? Está curtindo a vida acadêmica?

Eliane Costa - A riqueza das experiências que vivi como gestora cultural na Petrobras me impeliram a voltar à Academia para refletir de forma mais sistemática sobre tudo aquilo. Fiz o mestrado nos meus dois últimos anos como gestora. Minha dissertação, sobre as políticas públicas para a cultura digital na gestão Gil, os Pontos de Cultura, etc, foi publicada e o livro (Jangada Digital) está disponível na rede para compartilhamento e download, licenciado em Creative Commons. Ano passado, publiquei outro livro: uma coletânea organizada por mim juntamente com Gabi Agustini, chamada De baixo para cima, sobre os novos paradigmas da interseção cultura-tecnologia-inovação cidadã. Também está disponível para download e compartilhamento na rede, na plataforma digital homônima. Daí, parti para o doutorado, onde estudo em que medida narrativas desenvolvidas em mídia digital por agentes culturais periféricos podem ser entendidas como novas territorializações no ciberespaço, na perspectiva do enfrentamento da invisibilidade social que marca os sujeitos dessas narrativas. Meu campo de estudo são iniciativas culturais que se desenvolvem nas bordas sociais da cidade do Rio de Janeiro. 


Me aposentei da Petrobras há 3 anos, mas continuei trabalhando muuuuuuuuuuuito! Sou professora, palestrante, coach e coordeno o MBA cultural da FGV. Ser gestora da política cultural da Petrobras foi uma das muitas felicidades que tive ao longo da minha vida profissional e pessoal. Mas não sinto saudade. Saí de lá com uma sensação muito boa: a de ter feito tudo o que pude. 


Alê Barreto - O curso que você coordena foi reformulado. Fale sobre o novo foco do “MBA em Bens culturais: cultura, economia e gestão” e quais seriam os públicos interessados nesta proposta.

Eliane Costa - Sim, o curso foi significativamente reformulado e a nova turma começa agora em setembro. As inscrições, aliás, estão abertas no site da FGV (http://mgm-rio.fgv.br/cursos/bens-culturais-cultura-economia-gestao). Buscamos um maior alinhamento com o programa que já existia em São Paulo, trazendo uma base conceitual mais sólida no campo da cultura. Incorporamos também novas disciplinas, como “Gestão Cultural: desafios contemporâneos”, “Empreendedorismo no campo cultural”, “Panoramas setoriais” (música, audiovisual, artes cênicas, artes visuais, editorial, moda, gastronomia, design, games, gestão de acervos, etc), “Gestão financeira aplicada à cultura”, entre outras. Nosso público são os profissionais graduados em qualquer área, que estejam buscando se especializar nos campos da produção e da gestão. O curso é voltado, tanto para produtores culturais e empreendedores criativos, quanto para profissionais e gestores que atuam em empresas privadas, fundações, poder público ou organizações do Terceiro Setor, estejam eles à frente de projetos, empreendimentos ou equipamentos culturais ou dedicados à concepção e gestão de políticas culturais e de programas de patrocínio ou responsabilidade social.

Alê Barreto - Muita gente acha que a crise econômica é um sinal de menos investimento. E muita gente acredita que é no momento de crise que é fundamental se investir em qualificação e aperfeiçoamento. Qual é a sua opinião?

Eliane Costa - Acho que os momentos de crise, embora sempre angustiantes, são muito ricos, pois eles nos obrigam a pensar as coisas por outros pontos de vista. A refletir sobre nossas competências e nossos diferenciais e potencializá-los, por exemplo, por meio de escolhas certeiras de qualificação e aperfeiçoamento ou mesmo de reposicionamento. Acho que as crises são bons momentos para refletirmos sobre quais são os valores que realmente movem cada um de nós. Que coisas, na correria, deixamos pra trás? Buscar parceiros, investir em trocas, criar e consolidar redes, compartilhar recursos, oportunidades, aflições e conquistas. Tenho trabalhado bastante como coach, especialmente com pessoas do campo cultural, e vejo que muitas vezes focamos mais nas dificuldades do contexto do que nas nossas próprias lacunas. Nos momentos de crise é ainda mais oportuno identificar as nossas potências e colocá-las em movimento. 


[Fim da entrevista]






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* Alexandre Barreto é administrador pela Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (EAD/UFRGS) e MBA em Gestão Cultural pela Universidade Cândido Mendes (RJ) . Empreendedor que dissemina conhecimentos e atua em redes para promover mudanças. Escreveu os livros Aprenda a Organizar um Show e Carreira Artística e Criativa
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